Por um olhar opositor e um agir impedante

Por Laura Guimarães Corrêa

 

A discussão sobre comunicação e mídia tem figurado, há décadas, em reflexões de pioneiros dos estudos sobre raça no Brasil; intelectuais e ativistas têm atuado fortemente na denúncia do racismo nas construções midiáticas. O pensamento de mulheres negras brasileiras sobre a sociedade, assim como a crítica às construções de sentido midiatizadas, não começa hoje: é anterior inclusive à invenção do conceito de interseccionalidade. Reconhecido esse legado, um olhar para o contemporâneo mostra um crescimento evidente do interesse na pesquisa sobre comunicação, racismo e antirracismo no Brasil, resultado de árduas batalhas e de políticas públicas na educação. Cada vez mais, tem-se considerado a interseccionalidade das categorias de poder como articulação estruturante das desigualdades brasileiras. Podemos ver, nos últimos anos, sinais de que o interesse na articulação sobre Comunicação e Raça tem crescido: observamos com alegria que esse tema, tão crucial para compreender a realidade brasileira, emerge com potência em eventos acadêmicos, em cursos de graduação e pós-graduação, nas discussões em sala de aula, em publicações recentes.

Há, no país, importantes autores, negros/as e brancos/as, com trajetória consolidada e reflexões sobre raça, mas essas questões têm sido tratadas com certa timidez nos lugares estabelecidos da pesquisa em comunicação, como as associações e eventos da área. É importante lembrar que ainda não existem, por exemplo, grupos de trabalho nos principais congressos e eventos de comunicação que estejam dedicados de maneira mais específica às questões étnico-raciais. Ainda há muito a fazer, pensar e produzir. A formalização, em 2018, no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq, do Coragem – Grupo de Pesquisa em Comunicação, Raça e Gênero da UFMG, vem marcar um dos lugares dedicados à pesquisa das práticas comunicativas, principalmente as midiáticas, a partir do paradigma interseccional, de teorias e conceitos propostos por autores/as pertencentes ou advindos/as de grupos subalternizados da sociedade. A publicação deste livro é uma das ações do Coragem. 

A ideia, neste livro, foi convidar pesquisadores para pensarmos sobre questões raciais em sua relação com a comunicação nas suas várias facetas. A diversidade de abordagens e temáticas é reveladora da riqueza epistemológica e da potência desse campo de conhecimento, ainda pouco explorado. Acreditamos que esta publicação irá contribuir para enriquecer a bibliografia de cursos de graduação em comunicação, jornalismo, publicidade, relações públicas, audiovisual, pedagogia, sociologia, ciência política, ciência da informação, artes, entre outros. Este livro pretende trazer também contribuições para estudantes que empreendem pesquisas de pós-graduação relacionadas a questões raciais, além de dialogar com professores interessados nas reflexões sobre raça e outras formas de opressão. Com esta publicação, queremos dialogar também com profissionais da área que desejam refletir sobre as práticas discursivas no campo da comunicação midiática. Nesse trabalho conjunto, pretendemos fomentar a observação de sentidos circulantes na sociedade, refletir sobre desigualdades, racismo, violências físicas e simbólicas; assim como olhar para as necessárias e potentes transformações.

Parafraseando Milton Santos, lembramos que a luta das pessoas negras só pode ter algum sucesso se envolver todos os brasileiros, inclusive os negros, mas não só os negros. Nilma Lino Gomes diz também que “(…) refletir sobre a questão racial brasileira não é algo particular que deve interessar somente às pessoas que pertencem ao grupo étnico/racial negro. Ela é uma questão social, política e cultural de todos(as) os(as) brasileiros(as) (…) e também mundial quando ampliamos a nossa reflexão sobre as relações entre negros e brancos, entre outros grupos étnico-raciais, nos diferentes contextos internacionais. Enfim, ela é uma questão da humanidade”¹. 

Com abordagens e objetos variados e, ao mesmo tempo, bastante convergentes, o conjunto de textos é dividido em três partes: I) Aproximações para o estudo de Comunicação e Raça; II) Transversalidades estéticas e políticas; e III) Racismos midiatizados e possíveis resistências. Menos do que uma divisão, a organização tem o objetivo de traçar relações e sugerir conexões entre os capítulos que as compõem, mas não constituem obrigatoriamente uma ordem de leitura. Seja por afinidade teórica, por referências em comum, pela proposta argumentativa, essas vozes negras estão em comunicação, em diálogo.

A parte I, Aproximações para o estudo de Comunicação e Raça, traz discussões teórico-epistemológicas relacionadas ao campo da comunicação, refletindo sobre as implicações e a importância de se pensar as conexões entre mídia e racismo. O primeiro texto da seção, Mídias, racismos e outras formas de destituição: elementos para o reposicionamento do campo da comunicação, consiste numa instigante reflexão da pesquisadora da USP Rosane Borges, que se / nos pergunta sobre a (im)possibilidade de pensarmos em vínculos na contemporaneidade sem a adoção de perspectivas plurais. A autora entende raça e racismo como categorias que renovam as práticas midiáticas e questionam a comunicação em suas múltiplas faces. 

No segundo capítulo, Racismo e orientalismo: o papel da mídia, Shakuntala Banaji apresenta definições para os conceitos de racismo, orientalismo, estereótipos, auto-orientalismo. Adotando uma acepção abrangente de Oriente baseada em Edward Said, e articulando aportes teóricos de importantes autores/as como hooks, Gramsci, Fanon e Foucault, a pesquisadora da LSE reflete sobre as implicações e efeitos do racismo na mídia como força que legitima a discriminação e a violência racial no contexto pós-colonial.

A parte II do livro tem como título Transversalidades estéticas e políticas e conta com quatro capítulos de autoras e autores que dialogam de forma inter e transdisciplinar com o campo da comunicação, enriquecendo as reflexões sobre raça, gênero e práticas midiáticas. No primeiro texto da seção, Maria Aparecida Moura, professora titular nas áreas de ciência da informação, semiótica, comunicação, entre outros temas, reflete sobre fenômenos estéticos de resistência no capítulo Semioses decoloniais: Afrofuturismo, performance e o colapso do privilégio branco. Ela entende que o esforço empreendido historicamente pelo ativismo negro em escala global permitiu a produção atual de conhecimento contra-hegemônico e a sua transformação em dispositivo reflexivo, dinâmico e decolonial.

No segundo capítulo da seção, As vozes de mulheres negras em três tempos, Cristiano Rodrigues e Viviane Gonçalves Freitas, pesquisadores da ciência política, analisam os repertórios discursivos e os enquadramentos interpretativos sobre gênero e raça em três experiências e períodos distintos na imprensa feminista negra, discutindo suas continuidades, rupturas, semelhanças e diferenças, a partir do paradigma interseccional.

O capítulo seguinte, Imprensa negra? A atuação de jornalistas negros nas redações em Minas Gerais, de autoria das jornalistas e pesquisadoras Márcia Maria Cruz e Edilene Lopes, surge da constatação da inexistência de dados oficiais sobre profissionais negros nas redações. Utilizando-se de entrevistas com profissionais, as autoras apresentam reflexões sobre as formas, desafios e espaços para se pautar a temática racial na imprensa comercial. 

O capítulo que fecha a parte 2 é de autoria do sociólogo e pesquisador da educação Rodrigo Ednilson de Jesus. Em O amor tem cor? O uso do Facebook como estratégia de letramento racial e de reexistência, o autor utiliza o conceito e letramento racial e parte de um inventivo experimento didático com dados coletados no Facebook para discutir a tendência endogâmica das relações amorosas, que contradiz a ideia de uma “nação mestiça” apoiada no mito da democracia racial.

A parte III do livro, Racismos midiatizados e possíveis resistências, é composta por quatro capítulos que tematizam e investigam, a partir de material empírico, a relação entre comunicação midiática e as desigualdades de raça e gênero. No primeiro deles, “É a representação da miscigenação, parem de problematizar”: O racismo na circulação midiática da campanha de natal Chester Perdigão, o pesquisador da publicidade Pablo Moreno Fernandes Viana apresenta um estudo de caso sobre as discussões que circularam em torno da representação de pessoas negras e brancas na publicidade brasileira, observando filmes publicitários, portais jornalísticos e sua reverberação no Youtube. 

Publicidade Tombamento: entre as tentativas de refletir e refratar a realidade racial brasileira na mídia, segundo capítulo dessa seção, consiste em uma reflexão dos pesquisadores Francisco Leite e Angélica Souza, apoiada nos estudos teóricos da midiatização do consumo, sobre como a comunicação publicitária vem refletindo e refratando os discursos circulantes da chamada “geração tombamento”, entendida como movimento de valorização da estética negra como ato político.

Em “Feminismo das preta”: tensões, conflitos e negociações nas enunciações do rap, os pesquisadores Lucianna Furtado e Elton Antunes discutem, a partir de perspectiva interseccional, o videoclipe “Mandume”, compreendendo o rap como produção cultural articuladora da multilocalidade da diáspora negra. Os autores elegem para análise o solo de Drik Barbosa, identificando, em suas falas, reivindicações políticas do feminismo negro.

No capítulo que fecha o livro, “Quem tem um não tem nenhum”: solidão e sub-representação de pessoas negras na mídia brasileira, Laura Corrêa e Mayra Bernardes tratam do fenômeno da/o Negra/o Única/o em produtos midiáticos, tensionando essa sub-representação com situações relatadas por pessoas negras em lugares geralmente ocupados pela branquitude. As autoras exploram as ideias de representação e representatividade a fim de pensar práticas e processos discursivos na comunicação.

A perspectiva crítica deve considerar que a mídia não está descolada da sociedade, que a comunicação é instância constituinte e ao mesmo tempo constituída pela realidade social e, por isso, lugar de embates, de movimentos e de invenção. Essas práticas criativas surgem de um olhar opositivo, expressão da feminista negra bell hooks, que afirma que aprendemos a olhar de certo modo como forma de resistência. Contra o racismo na sociedade, que se (re)produz na comunicação midiática, é preciso resistir ativamente, numa espécie de impedância, conceito ressignificado pelo colega pesquisador Pablo Saldanha, da Física, e que quer dizer “a propriedade de um circuito elétrico que impede uma tensão externa de produzir uma corrente devastadora no circuito, destruindo os seus elementos. A impedância total é uma combinação de suas partes resistiva e reativa”². Seguindo com essa apropriação conceitual, Rodrigo Ednilson, um dos autores deste livro, disse que a “população negra no Brasil, assim como os grupos populares, o indígena, o quilombola, nunca foi um povo só de resistência, foi um povo de impedância. Porque, se não fosse essa força ativa para superar as desigualdades e para construir alternativas novas, ele não teria resistido”³. Assim, em tempos de intolerância e de ameaças à humanidade das chamadas minorias, propomos uma prática impedante. E esperamos que a leitura deste livro traga reflexões e subsídios para mais conversas e ações que incidam de forma positiva nas transformações das relações raciais hierarquizadas na mídia e na sociedade de modo mais abrangente.

Por último, mas não menos importante, agradeço às pessoas que apoiaram a realização deste livro: à Lucianna Furtado e à Mayra Bernardes pela contribuição e parceria de sempre; à Pâmela Guimarães-Silva, pelo auxílio no início do projeto; ao Pablo Moreno e ao Cristiano Rodrigues, pelo apoio na leitura e tradução. À Nilma Lino Gomes, pela confiança. Às autoras e aos autores, pelas ricas contribuições. E, principalmente, a quem veio antes de nós, abrindo caminhos para essas reflexões.

 

Referências:

¹ GOMES, Nilma Lino. Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações raciais no Brasil: uma breve discussão. In: BRASIL. Educação Anti-racista: caminhos abertos pela Lei federal nº 10.639/03. Brasília, MEC, Secretaria de educação continuada e alfabetização e diversidade, 2005.

² SALDANHA, Pablo. Mensagem pessoal recebida por <guimaraes.laura@gmail> em 5 dez. 2018.

³ JESUS, Rodrigo Ednilson. Entrevista à TV Sinpro Minas - Ser Negro no Brasil. 14 mai. 2019.