Entrevista - Antônio Roberto Faustino - Foto: Concedida pelo entrevistado

PERGUNTA: Como avalia as atuais estratégias discursivas que fazem parte do processo de industrialização da educação?

RESPOSTA: Conforme foi possível constatar mediante nossa pesquisa de doutoramento, uma década atrás, as estratégias discursivas em torno do processo de industrialização do ensino reiteram uma discursividade que tem origem no Brasil, pelo menos, em meados do século passado. Na esfera privada, não surpreende que o processo de expansão do capitalismo sobre o campo da educação aconteça supervalorizado pelo discurso de que a pragmática instrumental-tecnológica conduzirá, inexoravelmente, à revolução do processo de ensino-aprendizagem. O preocupante é que, na esfera pública, além de fazer parte há décadas da estratégia político-institucional de formação de recursos humanos em larga escala, com destaque para os professores, a educação a distância ganha força no século 21 corroborada por um discurso positivista, praticamente, hegemônico, sem divergências essenciais entre governos liberais e socialistas. Muito menos ainda, sem a problematização contundente por parte daquele que se poderia colocar como pensamento crítico. Como diria Foucault, o discurso da industrialização do ensino assume uma regularidade tal no novo século a ponto de se travestir em uma vontade de verdade que não só profetiza sobre o iminente futuro da educação, mas contribui relevantemente para sua efetiva e crescente materialização.

 

P: A popularização da EAD pode ser considerada um obstáculo ao ensino de qualidade? Da forma superior, de modo específico, por quê?

R: Do ponto de vista das políticas (neo)liberais, sejam privadas ou mesmo públicas, a popularização da EAD nos tempos hodiernos tem se tornado a locomotiva da universalização do ensino. Quando consideramos que o Brasil tem hoje um número de celulares que supera o de habitantes, com imenso potencial de conexão à web, essa representação encontra procedência, não fosse um desafio mais profundo. Se já tem sido difícil à história de nossa educação e da própria pedagogia alfabetizar uma turma composta por 30 ou 40 alunos (presencial), praticamente, é uma ilusão pretender garantir ensino de qualidade a cada um dos 300 ou 400 estudantes matriculados, em média, em um curso a distância. No ensino superior, nós enfrentamos um agravante, situado na origem da EAD. Diferentemente de países em que a EAD se originou e expandiu no ambiente universitário e no mundo do trabalho, quando em tese o indivíduo já goza de adultez cognitiva e emancipatória, não só para interagir academicamente mas para mobilizar uma ação comunicativa na postulada sociedade da informação e do conhecimento, por aqui tem-se atribuído a objetos e ambientes virtuais de aprendizagem a redenção de déficits educacionais, desde os anos iniciais de estudo. O estudante de um curso universitário a distância, matriculado em grande parte em instituições privadas e sob um cenário em que a EAD poderá atingir no futuro próximo metade do ensino superior no Brasil, representa muitas vezes aquele indivíduo que, justamente, não recebeu uma Educação Básica de boa qualidade, condição sine qua non para ingressar na maioria dos cursos e IES presenciais de referência, nas várias regiões do país.

 

P: Mesmo com a capacitação de bons profissionais, a ausência do contato e comunicação diretos entre professores e alunos em sala de aula tende a tornar o processo de aprendizagem impessoal. O senhor concorda? Se sim, como ultrapassar essa barreira?

R: Evidentemente que não podemos ignorar que a aprendizagem impessoal acontece, também, no ensino presencial face a face (marcado, tipicamente, pela aura das relações pessoais). Sobretudo quando, por razões nem sempre justificadas, deixamos de considerar a pessoa do estudante em sua plenitude e complexidade humanas. Contudo, seja essa plenitude seja essa complexidade enfrenta maiores dificuldades para ser sentida, vivida e/ou apreendida por meio mecânico, via espaços virtuais de aprendizagem. A melhor forma de superar essa “barreira”, ao que tudo indica, é assegurar um ensino de qualidade, preferencialmente presencial mas podendo também complementarmente acontecer a distância, compromissado com aquilo que a proposta pedagógica de uma determinada práxis educativo-coletiva considera como o mais referencial-fundamental de uma educação propriamente humanizadora: a aprendizagem de produzir de maneira ético-científica meios de vida.

 

P: No âmbito do Pentálogo X, sob a temática “Comunicação, Aprendizagens e Sentidos: difusão, mediação, interfaces, bifurcações”, como vê o papel destas matrizes como contribuintes para o papel da comunicação no que diz respeito aos novos e complexos processos de circulação de conhecimentos?

R: Não há dúvida de que a emergência e amplificação das novas interfaces e bifurcações jogam papel decisivo para a comunicação exercer maior impacto na circulação de conhecimentos na contemporaneidade. Iniciativas como o “Creative Commmons” e o acesso aberto impactam, cada vez mais, a economia e controle do conhecimento, destacando o Brasil como país na vanguarda desse processo. As redes sociais, em que pese suas contradições, adensaram esse ciclo até escalas mais amplas da população, engendrando um fluxo de circulação da informação e do conhecimento sem precedentes e a ponto de criar condições objetivas de contra hegemonia, inclusive, do ponto de vista da verdade. Acontece que, no caso particular do Brasil, o reconhecido avanço da comunicação pública esbarra no insistente atraso da educação. Sem educação de qualidade, não há comunicação que garanta a circulação de conhecimento capaz de provocar desalheamento à objetividade.

 

P: Conhece trabalhos de avaliação sobre a EAD que levem em conta a escuta de observações vinda do mundo dos seus usuários? Que problemas são apontados por essas escutas?

R: Na verdade, a tradição da pesquisa funcionalista continua muito forte entre nós, privilegiando não apenas interesses e demandas, como também temáticas da esfera da produção/difusão. Mesmo estudos baseados em aportes teórico-metodológicos críticos, no mais das vezes, pouco têm contribuído para romper com essa tendência, lançando pouca luz sobre possibilidades emancipatórias emanadas das experiências de EAD. Caso, inclusive, da minha própria pesquisa de doutorado que, partindo da sociologia industrial e, mais especificamente, daquilo que a literatura internacional considera como teoria da industrialização do ensino, concebe a EAD como o sistema responsável pela culminância da aplicação intensiva do princípio da produção e consumo em massa à educação. O que implica às políticas públicas de EAD reproduzirem, até as últimas consequências, as características típicas e marcantes dos sistemas industriais: racionalização, divisão de trabalho, mecanização, linha de montagem, trabalho preparatório, planejamento, organização, mudança e especialização de funções, métodos de controle científicos, formalização, padronização, objetivação, concentração e centralização. Não por acaso, minha preocupação durante o CISECO 2019 em abordar aquilo que nos tem faltado reconhecer que é o que está acontecendo, objetiva e diretamente, na ponta desse sistema de ensino, envolvendo, portanto, os processos de mediação, interfaces e bifurcações responsáveis pela qualidade da comunicação, das aprendizagens e dos sentidos que movem, sobretudo, as realidades e expectativas dos estudantes de EAD. Nossa contribuição, particularmente, busca prospectar que conceitos e experiências diversas e, às vezes, contraditórias têm contribuído para romper a hegemonia da “pragmática difusionista” sobre a formação continuada de professores em EAD, como resultado de novos e bem mais complexos processos de circulação de conhecimentos.