Entrevista - José Luiz Braga - Foto: Reprodução

PERGUNTA: Que efeitos diretos a midiatização traz para a democracia, por exemplo, no contexto político atual brasileiro?

RESPOSTA: A midiatização crescente da sociedade gera efeitos complexos, mas em maioria indiretos – através de um deslocamento de hábitos estabelecidos e de padrões de interação social, modificados em função de “experimentações” sociais relativas às ofertas e funcionalidades tecnológicas. Não geramos ainda um corpo de processos e dispositivos interacionais midiáticos que evitem ameaças à democracia e que funcionem em seu apoio. No artigo apresentado no Pentálogo IX, de 2018, afirmei que democracia não é o nome de uma forma de governo, e sim um modo interacional muito abrangente, em experimentação ativa há mais de dois milênios, para dar norte e critério ao exercício das diferenças humanas em todas as coisas que fazemos e pensamos. É por isso, e nesse ângulo, que devemos exigi-lo também dos governos e da organização da coisa pública. As tecnologias têm agência específica – mas cada setor social faz coisas diversas em conformidade com seus interesses. Uma rede digital pode servir para articular movimentos sociais e observatórios, para circular informações relevantes para a cidadania, com um claro efeito positivo para o processo democrático; mas também pode fazer circular fake news, estimular polarizações antidemocráticas, e gerar opressões. Em síntese: ainda que a viabilização de processos tecnológicos tenha características específicas, não indiferentes, o relevante é o que seja feito com suas funcionalidades.

 

P: O senhor acredita que a mídia tradicional seja ainda forte influenciadora em uma sociedade democrática, ou a popularidade das demais ferramentas comunicacionais, como as redes sociais, já ofereceram ao próprio público a função de protagonista em termos de difusão, seleção, avaliação e análise de informações?

R: Não há uma contraposição necessária entre “grandes mídias empresariais” e “redes digitais”, mas uma complexificação extraordinária de todos os hábitos culturais. Isso modifica os padrões da grande mídia, implica relações diversificadas entre estas e as redes digitais, um quadro novo e ainda desorganizado para os processos da produção de informação e seus circuitos. Certamente, a grande mídia tem ainda uma forte influência, para o bem e para o mal. Felizmente, nessa segunda alternativa (aliás presenciada recentemente – embora pareça que, aos poucos, as grandes mídias voltam a fazer jornalismo) vem se desenvolvendo uma nova onda de imprensa alternativa, baseada nos processos digitais. A primeira onda foi a dos anos 60/70, com os semanários críticos, tabloides que sofreram e enfrentaram a censura governamental. Os processos digitais dão maior autonomia e circulação aos alternativos – que poderão, talvez, elaborar um novo alcance jornalístico. Assim, o protagonismo na difusão de informação está em processo de reelaboração em todos os níveis da sociedade. Não é propriamente o “público”, tomado em conceito genérico, que assume o protagonismo. Um maior número de pessoas tem acesso direto a postar (pelo menos em seus circuitos habituais) sua opinião – mas os setores organizados, fundamentados em conceitos de cidadania, de democracia e de valores sociais abertos e igualitários, é que poderão se desenvolver como protagonistas de uma circulação aberta e transparente, para resistir à polarização, perante antagonistas excludentes. A linha que atravessa essa distinção de “campos” não é a das distinções tecnológicas, e sim a que separa circuitos abertos de circuitos de pensamento único excludente.

 

P: A própria tecnologia é capaz de ser um meio para solucionar as falhas por ela mesma proporcionadas que começam a se expandir nos sistemas de relações sociais?

R: Eu diria que nada está garantido, nesse aspecto. Não é a tecnologia, per se, que gera diretamente as falhas, mas seus modos de uso. Nem a tecnologia as resolverá, por ação de técnica ou aperfeiçoamento das codificações. A tecnologia é um desafio constante pois, ao lado das muitas ofertas positivas que podem ter motivado sua origem, seu uso oferece um duplo risco,: - ser acionada a serviço de interesses mesquinhos, espoliadores e opressores, por parte dos que tem acesso a suas funcionalidades e poder político-econômico; - ser conduzida pelos equívocos da ingenuidade, do imediatismo, do pensamento simplista e de falta de visão de conjunto – em ações que, às vezes associadas às melhores intenções, resultam ainda assim em consequências desastrosas (até para os próprios acionadores dos processos). Assim, não será uma tecnologia mais complexa que corrigirá as falhas (sociais) resultantes das tecnologias em curso. Mas estas, assim como fazem parte dos desafios e dos enganos, serão inevitavelmente necessárias no enfrentamento estratégico dos desvios e desacertos.

 

P: A ameaça da democracia pela polarização pode ser tida como um problema desenvolvido ao passo da proliferação das redes, ou era pertencente também à mídia tradicional, em sua época de auge?

R: A polarização me parece ser um risco inerente à espécie humana (talvez em decorrência dos instintos de ataque ou fuga), que só um alto grau de civilização cultural conseguirá enfrentar. Assim, todos os processos materiais e simbólicos têm servido a essa tendência limitante de nossa biologia. Naturalmente, a forma da polarização varia conforme a cultura e os instrumentos disponíveis – mas em qualquer situação corresponde à definição do polo oposto como um adversário reduzido à dimensão única do desacordo, dimensão recusada, com desprezo por quaisquer outras características que o componham. A polarização faz o polo opressor retirar o reconhecimento de humanidade de seu adversário – o que abre espaço para a violência simbólica e eventualmente física. Assim, a polarização é a estrutura mais radicalmente oposta à democracia, que prega e defende o respeito pela diversidade. A polarização elimina a possibilidade de interação significativa. Em uma sociedade em processo de midiatização, a facilidade com que se pode reduzir circuitos a processo de pensamento único, com a exclusão do menor desacordo, é certamente um reforço para a polarização social. Além de macro linhas de opinião, a polarização (ou sub polarizações) pode se organizar em torno de qualquer pequena questão – com a nociva facilidade de expandi-la em circuitos ampliados. As tecnologias digitais viabilizam “todos conversarem com todos” – o que hipoteticamente estimularia um encontro produtivo de diferenças – a exemplo do que foi a urbanização europeia dos séculos XVII e XVIII. Mas, aparentemente, muitos preferem encolher-se em circuitos fechados entre “iguais”, excluindo os diferentes e qualquer negociação entre diversos. No Brasil, percebemos como isso favoreceu outro processo maior de polarização, que alcançou o espaço político mais geral, e governamental. Isso não é propriamente um efeito direto das tecnologias – mas consequência do uso destas em uma conjuntura favorecedora de exclusões e de um reduzido nível de civilização.

 

P: Como vê as questões apresentadas pelo seu texto, à luz da proposta do Pentálogo X, especialmente as matrizes de análises comunicacionais pela proposta suscitada?

R: O Pentálogo X enfatizará, entre outros aspectos correlacionados, a questão da aprendizagem. Essa noção tende a ser usada, sobretudo, para referir a aquisição de ideias e processos prontos: alguém que não conhece determinados fazeres e saberes os recebe pela intercessão de outros que os têm. Certamente, esse âmbito do aprender é importante, porque a sociedade não pode ter que recomeçar a cada geração. É preciso que os que já fizeram uma parte do caminho ensinem aos outros e que estes recebam o que os primeiros já receberam ou desenvolveram por descoberta ou invenção. Em situações (raras) de estabilidade social, é pela aprendizagem de saberes e fazeres já desenvolvidos que a sociedade lentamente vai se consolidando, aperfeiçoando processos, corrigindo problemas surgentes. Uma aprendizagem adicional ao já conhecido se faz quase imperceptivelmente, sobre as aprendizagens de aprendiz – de quem recebe de mestres uma cultura estabilizada e a leva adiante quase só com ajustes de adaptação. Em situações (bem mais frequentes) de instabilidade; e particularmente na contemporaneidade da midiatização, é necessário aprender a cada dia, a cada passo o que a realidade impõe como desafio. Aprende-se no enfrentamento e na busca de estratégias para a urgência. Não se trata de aprender o uso dos meios (esta é uma aprendizagem “tradicional”, ou seja, recebida: do saber usar). Trata-se antes de experimentar e de inventar processos sociais que façam sentido – o que se torna fundamental para ir além do já elaborado pela sociedade, para continuar a pesquisar as próprias dificuldades, descobrir melhores desafios e inventar estruturas mais humanas, não condicionadas algoritmicamente pela máquina. Se os processos midiáticos não forem conduzidos por legítimos interesses humanos serão apenas máquinas nos conduzindo. A agência tecnológica não é nem ética, nem criativa – é apenas código, a ser sempre reinterpretado em função de desafios reais. Nesse espaço, aprender não significa apenas saber fazer, mas também experimentar, inferir, inventar – com objetivos civilizacionais, sem os quais a tecnologia se torna instrumento da polarização. É nessa perspectiva que a aprendizagem da comunicação se contrapõe às estruturas da polarização e das ameaças à democracia.