Entrevista - Sônia Fleury - Foto: Reprodução

PERGUNTA:  Fale um pouco mais sobre a articulação entre os diferentes modos de centralidade da favela a serem explorados na sua apresentação no Pentálogo X.

R: O que eu propus trabalhar no evento é, a partir de dois trabalhos que eu fiz anteriormente: uma pesquisa da época das UPPs na favela, no qual a gente mostrou que essa política pública tinha, como toda política pública, não só uma produção material, em termos de recursos, atuação, profissionais; mas uma produção simbólica, que é parte da própria política pública. Neste caso da UPP, essa produção simbólica foi grandemente feita através da mídia, que produzia um discurso sobre a favela, e produzia um discurso hegemônico, sobre a própria política das UPPs, ao ponto de que você tinha uma política de colocar militares dentro da favela e isso se chamava pacificação. Quer dizer, como os símbolos e os significados tomam aí uma dimensão que é completamente contraditória com o que é a realidade material. Você põe polícias, põe militares armados dentro da favela e chama isso de pacificação. Então esse é o discurso de falar sobre a favela a partir da mídia, de construir todo um significado de uma política pública.

O outro foi que, a partir de toda essa vivência no trabalho das favelas, comecei a perceber a necessidade que as pessoas que ali moram tinham de construir o seu próprio discurso e ter um lugar de fala como sujeito, e não só como objeto da política pública. Hoje, isso se manifesta muito na existência de um conjunto de meios de comunicação dentro da favela, de centros culturais, de grupos, coletivos de poesia, de slam, de tudo isso, que são formas em que a própria favela fala de si mesma.

 

P: Junto a isso, qual a relação entre a pesquisa e toda a exposição com o tema do Pentálogo X, a fim de aprofundar os processos de produção e circulação de conhecimentos nessa nova ambiência digital?

R: Uma das questões importantes para todos eles e também para os pesquisadores era buscar, através do resgatar da memória da favela, construir uma identidade coletiva que fortalecesse a autoestima desses sujeitos e as suas reivindicações em termos de direitos. Por outro lado, percebi que havia um conjunto de pesquisadores de diferentes áreas disciplinares, que trabalham o tema de favela (sejam pessoas da questão urbana, antropologia, geografia), de várias disciplinas, mas que havia pouca circulação desses conhecimentos entre as áreas disciplinares e entre a academia e a própria favela. Os acadêmicos vão à favela, colhem os discursos e depois a devolução é muito pequena. A ideia de criar uma plataforma Wiki, que é a segunda proposta que eu vou levar para apresentar, o Dicionário de Favelas, é de permitir construir um lugar de uma produção coletiva sobre a favela de diferentes atores e diferentes visões, tanto de moradores quanto de pesquisadores comprometidos com a emancipação dos próprios territórios dos moradores.

 

P: Como a senhora vê a sustentabilidade dessa forma colaborativa de trabalhar que o dicionário de favelas oferece?

R: Veja, nós temos um apoio inicial muito pequeno do CNPq. Depois disso, esse projeto se inicia na Fundação Getúlio Vargas, onde eu trabalhava – e depois, por motivos de autoritarismo vigente, fui demitida – e levamos esse projeto para a Fiocruz. Ele está em um Instituto que o acolheu, que é o Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde, o ICICT da Fiocruz, que é muito ligado ao próprio Pentálogo e tem participado sempre desses eventos. Então, ali, nós temos um outro apoio grande, um financiamento grande, e também estamos mais ligados a pessoas que lidam com tecnologia da informação, com comunicação.

Além disso, nós construímos uma rede. Esse trabalho é colaborativo e ele envolve uma grande rede de instituições que participaram desde o início, e ao qual vão sendo agregadas outras instituições que construíram o primeiro projeto e que participam do chamado Conselho Editorial. Então, nós temos o Conselho Editorial, do qual participam várias universidades e centros que estudam favelas, e também vários centros culturais de intelectuais de favela, que participam conjuntamente nesse Conselho Editorial. É a existência dessa rede que a gente acredita que dá a sustentabilidade. É claro que nós temos um financiamento, mas nós temos pessoas engajadas no projeto, e hoje esse é um trabalho voluntário.

Nós temos hoje 170 participantes inscritos, já inscrevendo número igual de emendas e verbetes. E cada dia cresce mais, é uma bola de neve, cada dia você vai lá e tem mais uma ou outra pessoa que entrou. Então, nós trabalhamos muito na mobilização das comunidades. Vamos lá, discutimos, apresentamos isso nas universidades, nos centros culturais, nos museus de favela e tudo mais, mobilizando os atores para que participem. A aceitação é realmente enorme. Eu acho que é essa ideia, a própria ideia é que é tão bem aceita e que dá a sustentabilidade. Mas é claro que a gente precisa de recursos também.

 

P: Qual seria o potencial de se constituir em referência para outras iniciativas que buscam os mesmos objetivos? A ferramenta já vem sendo utilizada como referência para a produção de artigos científicos, desenvolvidos sobre esse tema?

R: Veja, nós, da nossa equipe, estamos começando agora a produção de artigos. Estivemos selecionando artigos para serem apresentados em congressos internacionais e nacionais. É o primeiro esforço, porque até agora nós estávamos no esforço de carregar piano (risos), de montar isso e de difundir essa ideia e conversar com as pessoas e tudo mais. Mas é claro que qualquer pessoa pode entrar e, desses 170 verbetes que estão ali, extrair muitos conhecimentos, interpretar as diferenças entre a forma como as pessoas da favela falam da favela, e como as pessoas da academia falam da favela. São formas diferentes de tratar da mesma coisa e permitem inúmeras leituras e inúmeros aprofundamentos em termos de discurso, significado, circulação de informação, tudo isso. É um material que está à disposição para qualquer pessoa trabalhar e pesquisar.

Por exemplo, por que os acadêmicos falam de militarização, como eu falo, e por que lá as pessoas que vivem a militarização falam de chacina? São termos e significados distintos porque são vivências muito diferentes. É a própria forma de falar, e a cada dia mais surgem novas demandas. Agora estamos trabalhando para conseguir colocar mais depoimentos em áudio, porque, na verdade, quando você obriga as pessoas que são de uma tradição, de uma história oral, para escreverem sobre sua vivência, você está colocando-as dentro de uma estrutura, que é a estrutura da escrita, que tem restrições para pessoas que têm uma tradição mais oral. Assim como, para os pesquisadores da academia, é muito difícil fazer textos que comuniquem, porque eles escrevem para eles mesmos. São desafios diferentes que nós temos que enfrentar nessa circulação que nós estamos criando, são pessoas que falam diferentes linguagens, com diferentes instrumentos.

Então, nós estamos começando colocando mais fotos, ontem nós tivemos uma reunião com o pessoal técnico do ICICT para conseguir colocar mais áudios também. Para vídeos e filmes, nós estamos fazendo, até agora, só links para os vídeos que estão no Youtube, coisas desse tipo. Mas abrimos um verbete sobre fotos de favela, abrimos também um verbete sobre poesia em favela, para que as pessoas possam se manifestar, já que a poesia é uma forma muito presente de manifestação nas periferias urbanas hoje.

A cada dia, temos mais possibilidades e desafios a enfrentar – são muitos. Inclusive tecnicamente, porque nós não quisemos fazer o nosso dicionário dentro da plataforma Wiki. Usamos a plataforma Wiki, mas não a Wikipedia. Porque a Wikipedia tem um princípio, que é o princípio da neutralidade; ou seja, uma pessoa vem e escreve, a outra escreve em cima, e aquilo depende mais do empenho de uma pessoa do que de outras coisas para aquele conhecimento ficar ali. Nós queremos conhecimento com rigor, rigor acadêmico, rigor da própria experiência de vida dessa pessoa, mas nós partimos do princípio de pluralidade, e não de neutralidade. Nós não somos neutros. Nós colocamos pessoas que têm certa visão sobre a favela e é isso que a gente quer ouvir. E essas visões não são homogêneas, não são unitárias. Dentro da própria favela as pessoas pensam muito diferente. O que nós queremos é que, se uma pessoa escreve um verbete e outra discorda, ela possa criar outro verbete debatendo, discordando e tudo mais. E nós vamos apontar as polêmicas e as divergências, e não obrigar, como na Wikipedia, a criar um falso consenso de que há um único texto sobre uma realidade. Isso nós não queremos. Então, são esses tipos de desafio.

 

P: Os próprios autores de materiais produzidos sobre esse tema, até com o auxílio da plataforma, podem publicar as produções deles nesse mesmo espaço?

R: Nós usamos o princípio do common good, é um bem público. Então, nós colocamos aqui coisas que as pessoas aceitam que é o bem público e não só eles como qualquer outra pessoa pode usar aquilo e colocar em outro local, desde que faça referência à autoria, de quem escreveu e tudo mais. Mas é com o princípio de bem público que nós trabalhamos. Quando a pessoa entra lá, tem normas, e a gente diz isso – “é um bem público a partir de agora” – e ela tem que aceitar colocar como bem público. E outras coisas que apareceram também, coisas muito interessantes que estão surgindo.

Em cada um desses centros culturais, museus na favela, as pessoas têm uma documentação que elas coletaram sobre a favela durante anos, têm recortes de jornais sobre as emoções iniciais, têm entrevistas com os primeiros moradores que estão em fita cassete, têm fotos, têm uma porção de coisas. Elas querem transformar esses acervos e organizá-los. E nós, com o dicionário, até agora não tínhamos condição. Então, o ICICT agora está abraçando esse projeto da construção de acervos. Ou seja, de capacitar os próprios organizadores dentro das favelas para que eles possam colocar esses seus acervos online, torna-los públicos para qualquer pessoa. E, também, para diminuir o risco quanto à incêndios e qualquer outra coisa que possa destruir esse material tão rico que está na casa das pessoas, nos centros culturais, mas em uma condição precária e não acessível, na maioria das vezes. É nessa fase que estamos entrando agora.

 

P: Então, qual é a importância/o impacto do ativismo dos próprios moradores, não só ativismo, militância e tal, além, essa identificação quando a gente fala em representatividade, construção de identidade e desmarginalização da favela?

R: Eu acho que, ao permitir que se construa uma história diferente da história oficial, uma história que resgate o papel da favela e a importância cultural, econômica, social e histórica da favela, nós estamos não só resgatando a memória da favela, mas resgatando a memória da cidade. Ou seja, a cidade negou durante milhares de anos a existência das suas periferias. Se você olhar os mapas mais antigos do Rio de Janeiro, os morros estão todos com arvorezinhas. A própria topografia da cidade é falsa, não apareciam ali as favelas que existem, os moradores que existem. E quando eles são vistos também, o próprio IBGE quando define favela, define como conjuntos de habitações subnormais, define sempre pela carência.

O que a favela reivindica hoje é ser entendida não só a partir das carências, que são muitas – de saneamento, de habitação, de tudo – mas da potência que tem a favela. Então, hoje a favela quer ser entendida como potência, não só como carência. Eu acho que deixar que a favela fale, criar uma possibilidade com um instrumento de altíssima tecnologia de ponta para que as pessoas que foram colocadas à margem possam usá-lo, é um trabalho político importante para democratizar a sociedade brasileira.

 

P: A plataforma possui um público alvo específico? Ou pretende alcançar tanto os principais atingidos (a comunidade da favela), quanto a comunidade científica e acadêmica (a quem possa interessar em termos de pesquisa)? Nesse caso, como dialogar de maneira acessível com ambos os públicos?

R: A plataforma, usando os termos do próprio CISECO, é um instrumento de mediação e de circulação de significados, de discursos, de narrativas diferentes vindas de lugares diferentes. Por exemplo, nós não interferimos nas narrativas. Nós temos ali alguns princípios éticos: está lá escrito que a pessoa tem que se submeter a eles. Nós não vamos fazer apologia ao crime nem deixar esse tipo de coisa. Mas a narrativa são as pessoas que vão construir. E, se as narrativas são tão distintas entre a academia e os moradores, isso vai ficar patente para os dois lados. Tanto um lado tenta se apropriar de alguns conceitos – e isso acontece cada vez que tem uma contaminação positiva. Por exemplo, hoje na favela muitos atores trabalham com o conceito de gentrificação e tudo isso, que é uma contaminação das análises acadêmicas. Mas também a academia se apropria de conceitos e de formas de compreensão da realidade que é vista a partir do olhar das pessoas que vivem ali na favela. Então, nós não temos um público alvo em específico, nós estamos trabalhando exatamente na circulação dos diferentes discursos para os diferentes públicos. 

 

P: A senhora tem mais algo a acrescentar, talvez algo que não foi perguntado?

R: Você já chegou a visitar a plataforma? É https://wikifavelas.com.br/, entre e dê uma passeada ali, o que falta é isso: convidar a ver, inclusive o projeto gráfico, que é lindo. Uma outra coisa: antes se chamava Dicionário Carioca de Favelas, quando começou. Depois, nós fizemos essa homenagem à Marielle, assumindo o nome dela depois que ela foi assassinada, porque a Marielle representa o lugar de fala da favela, em defesa da emancipação e dos próprios moradores da favela em busca da cidadania, mas também porque ela participou do dicionário, desde o início ela apoiou, escreveu. Então, por isso, essa homenagem tão forte porque a gente se compromete a seguir com os meus ideais que ela defendeu e pelos quais ela foi morta.

De certa maneira, é uma forma de nós dizermos, usando um slogan que é muito comum na favela: “a favela não se cala”. Esse é o nosso propósito. Mas eu lhe convido a visitar e olhar os verbetes, a variedade enorme de coisas interessantes. Você vai desde chacina, agentes de saúde, políticas públicas que foram feitas, lan houses, baile funk, tudo isso está ali colocado, é uma diversidade enorme e maravilhosa de você ver a favela de uma forma não homogênea, não estereotipada e não cheia de preconceitos.