Crônica de uma tragédia anunciada

Valdir de Castro Oliveira*

Talvez se houvesse fiscalização adequada, eficiente e independente, tragédias como as de Brumadinho e de Mariana e tantas outras que acontecem diuturnamente no ramo da indústria de mineração talvez pudessem ser evitadas.

E se somada à fiscalização houvesse também punições exemplares e rigorosas (civil, criminal e administrativa) para os responsáveis talvez não estivéssemos vivendo o calvário que estamos vivendo neste momento em Brumadinho com mais de uma centena de mortos e mais de duzentos desaparecidos, sem falar nos prejuízos econômicos e ambientais atuais, pretéritos e futuros causado ao município.

Sentenças rigorosas em tempo razoável para os culpados por estas tragédias poderiam inibir desastres como este que estamos vivendo hoje em Brumadinho. 

Mas, infelizmente, não é o que acontece neste nosso vasto país.

Diante disso resta-nos constatar quão falhos são os nossos sistemas de prevenção, como aconteceu no domingo, dia 27, às 5h30, quando as sirenas de alarme, acompanhadas de gritos desesperados anunciou o bloqueio da ponte do Rio Paraopeba que liga Brumadinho a Belo Horizonte e depois a ordem de evacuação das residências dos bairros próximos. A razão era o possível rompimento de outra barragem da Vale constituída por água e que, devido às chuvas, dava mostras de vazamentos com possibilidades de rompimento.

Se isto foi um teste ou não, a dúvida ficou no ar contabilizando centenas de cidadãos assustados e com seus sonos interrompidos. 

Segundo a Defesa Civil, caso esta barragem estourasse o prejuízo seria ainda pior do que aquele provocado pela lama da barragem de rejeitos, porque a água desceria com mais velocidade e atingiria áreas urbanas da cidade, já que poderia ficar represada na curva do Rio Paraopeba inundando os bairros próximos e o centro da cidade, como sempre acontece durante os períodos chuvosos mais fortes.

Mas não demorou muito e, felizmente, a avaliação feita pelas autoridades era a de que a barragem estava estável e sem perigo de rompimento.

Se por um lado foi positivo saber que este sistema de alarme funcionou na cidade, por outro lado foi chocante constatar que o sistema similar instalado no principal local da tragédia não tenha funcionado quando aconteceu o rompimento da barragem de rejeitos impedindo que os funcionários efetivos e terceirizados da empresa e visitantes que se encontravam no restaurante e no setor administrativo ficassem sem chance de escapar.

Depois desta tragédia, a pergunta que não quer se calar é a seguinte: por que razão havia um restaurante e várias instalações administrativas bem abaixo desta barragem?

As explicações provavelmente virão, embora não se saiba se terão a merecida credibilidade e consistência.

Há de se destacar também o incompetente sistema informativo e comunicativo da empresa desde o dia que aconteceu esta tragédia. Ao invés de informar e levar tranquilidade as pessoas, exacerbou e vem exacerbando mais ainda a paciência dos familiares que perderam algum ente querido nesta tragédia anunciada e o restante da população do município. Os canais indicados pela empresa funcionaram precariamente e quando alguém conseguia acioná-los recebia informações desencontradas e um atendimento pouco condizente com a dramaticidade da situação, não obstante a boa vontade dos funcionários ou das autoridades.

Ademais, se notava os frequentes desencontros entre a empresa, as autoridades e a defesa civil fazendo com que centenas de voluntários que se ofereciam para ajudar fossem secamente dispensados. Ademais, o comando das operações se apresentava pulverizado ora concentrado ora nos Bombeiros, ora na Polícia Militar ou entre a Defesa Civil do Estado e do Município enquanto a Vale pouco aparecia neste cenário. Só aos poucos esta organização foi ganhando consistência.

Neste tumulto muitos familiares das pessoas desaparecidas, angustiados, ficavam sabendo que pessoas feridas ou mortas encontradas haviam sido removidas para o IML, o Pronto-Socorro João XXIII e outros hospitais de Belo Horizonte e, de posse desta informação, para lá seguiam na esperança de ter notícias de seus entes queridos. Mas quando lá chegavam nada encontravam e retornavam cansadas e frustradas para Brumadinho.

A sensação que se tinha era a de que os representantes da Vale não se encontravam em nenhum lugar ou que optaram por uma atuação muito discreta, ao contrário das caríssimas peças publicitárias da empresa,  como a da série “Redescobridores”, que circulam Brasil em que a empresa, sem nenhuma cerimônia, adentra aos lares brasileiros através da televisão, da internet e dos telefones dos usuários da telefonia celular impondo sua presença e se colocando como amiga extremada da sustentabilidade, da segurança, da cultura  e do desenvolvimento social.

No entanto, se dedicarmos um olhar mais atento ao modo de funcionamento desta indústria no Brasil, principalmente em sua relação com o Estado e os respectivos órgãos de fiscalização ficaremos espantados com a promiscuidade ali existente. Segundo Bruno Milanez, estudioso do assunto, esta relação pode ser comparada a uma espécie de porta-giratória através da qual  as empresas contratam pessoas com cargos no governo e os representantes das empresas passam a ocupar estes mesmos cargos lembrando que no governo Temer todo o segundo escalão do Ministério de Minas e Energia veio dos quadros da Vale e o Código Mineral foi aprovado neste mesmo contexto (Folha de S. Paulo, 28/01/2019, p. A-20).  

Esta promiscuidade entre fiscalizado e fiscalizador não pode gerar coisa que presta, mas pode explicar muito de como funciona esta indústria no Brasil e as dezenas de desastres ambientais e humanos que acarreta à sociedade, como o de Mariana e agora este de Brumadinho. 

Mas dor maior durantes estes dias foi a de escutar a cada momento o alto-falante da igreja da cidade convocando parentes e amigos para o enterro de sobrinhos, tios, pais, irmãos  e irmãs,  vítimas desta tragédia, em ritmo de urgência e a angústia de ter que velá-los por momentos fugazes já que tinham de ser rapidamente enterrados devido ao estado em que chegavam do IML impedindo que os caixões pudessem ser abertos.

Se isto serve de consolo, diremos que pelo menos estas pessoas puderam ser enterradas para que a vida de seus familiares, por mais doída que seja daqui para a frente, possa ter continuidade.

Mas é difícil de imaginar neste momento a dor dos familiares com parentes desaparecidos, pois esta situação assemelha-se a um limbo impedindo que, através suas despedidas, possam dar  o desfecho deste ciclo e dar continuidade a vida por mais sofrida que ela seja daqui para a frente.  

De tudo isso só nos resta a dizer é a certeza de que luta pela vida e para este crime não fique impune, está apenas começando!  

*Jornalista, morador de Brumadinho e autor do livro Requiém para o Inhotim.
Foto: Guilherme Venaglia