Por Marco Antônio Rodrigues Dias*

O período tem sido difícil no que diz respeito às perdas de amigos. Nos últimos dois anos, perdi dois irmãos, um primo muito querido e um número impressionante de amigos ou de pessoas que, de uma maneira ou de outra, tiveram influência em minha vida. Foi o caso recente de Paulo de Tarso Santos e de Jorge Brovetto.

Ontem, fomos informados do falecimento de Dom Serafim Fernandes de Araújo. Evidentemente, todos conhecem o personagem público e evidentemente a imprensa está divulgando detalhes amplos de sua vida. Neste caso, o que me sobra são comentários pessoais. 

Em 1959, pouco tempo após me transferir do Rio para Belo Horizonte, Dom João Baptista da Mota e Albuquerque, arcebispo de Vitória, outro amigo, passou por Belo Horizonte e me deu dois conselhos: fazer o curso de Economia e estabelecer um contacto com Dom Serafim, que com pouco mais de 30 anos, acabara de ser nomeado bispo auxiliar de Belo Horizonte. Dom Serafim, segundo o arcebispo, era jovem, inteligente, brilhante.

Felizmente, por razões óbvias, não segui o primeiro conselho... Felizmente para mim, pouco tempo após chegar a Belo Horizonte, encontrei, por acaso, Dom Serafim e, logo, uma longa amizade se formou, da qual fui sempre quem mais se beneficiou.

Dom Serafim batizou dois de meus três filhos e também um afilhado querido, o Bruno (filho de Lélio e Leila), presidiu uma cerimônia de noivado como era costume na Belo Horizonte daquela época e passou a ser uma pessoa sempre presente em nossa vida. Em 1968, quando regressei da França, após completar um curso de pós-graduação na Universidade de Paris, tive convites para ir trabalhar no Jornal do Brasil (Alberto Dines via Fernando Gabeira) e no Jornal da Tarde do Estadão (Murilo Felisberto, via Ivan Ângelo). Acabei voltando para Belo Horizonte. A Arquidiocese de Belo Horizonte teve a oportunidade de comprar uma estação de rádio –a Jornal de Minas- e Dom Serafim disse que só compraria se eu aceitasse ser o diretor. Por isto, voltei para BH, o que foi conveniente pois a família de Sonia Telles, minha esposa, ali vivia e o primeiro filho, Paulo Henrique, estava chegando (nasceu em fevereiro de 1969).

Quando cheguei a BH pela primeira vez, em 1959, a Universidade Católica tinha sido criada há pouco tempo, funcionava num palacete no início da Cristovam Colombo, pertinho da residência episcopal, na Praça da Liberdade. Ela começou a se tornar realmente uma universidade em 1960, quando Dom Serafim assumiu sua direção. Sua capacidade e habilidade fizeram com que a Universidade incorporasse instituições isoladas, construísse um prédio e nele se instalasse na Avenida Brasil com Sergipe perto da Praça da Liberdade e ocupasse a área do antigo seminário na Gameleira, transformando-a num campus amplo e moderno.  Ao mesmo tempo, consolidava a instituição, que depois tornar-se-ia a PUC-MG, como sendo de qualidade no cenário nacional e internacional. (Detalhes da história da PUC são encontrados no livro "O sonho é possível" de Itamar de Oliveira). Seu trabalho consolidando a PUC-MG levou o diretor geral da UNESCO, Federico Mayor -creio que no final dos anos 80- a nomeá-lo membro do conselho do CRESALC –Centro Regional para a Educação Superior na América Latina e o Caribe-, sediado em Caracas. Assinalo também, sempre numa perspectiva pessoal, que, em 1969, Dom Serafim me nomeou presidente de uma comissão com o objetivo de estudar a conveniência da criação de um curso de comunicação na então UC de Minas Gerais.

Torcedor fanático do Atlético, Dom Serafim era o bispo querido de todos os mineiros, inclusive dos cruzeirenses. Na direção da Rádio Jornal, propus-lhe  fazer um programa diário de esportes. Ely Zico, chefe da seção de esportes da Rádio, apesar de cruzeirense fanático, entusiasmou-se. Imaginem o Arcebispo, depois Cardeal, falando de futebol todos os dias numa estação de rádio! A Jornal de Minas era pequena, tinha pouca potência, mas este programa tinha uma excelente audiência. Pena que, ao que eu saiba, não tenham sido guardadas cópias destas falas. Os comentários eram objetivos, precisos, destacavam o valor do futebol como arte, como espetáculo, como instrumento mesmo de educação. Era o tempo de Tostão, Piaza, Dirceu Lopes, José Carlos, no Cruzeiro; de Dario, no Atlético.

Mais tarde, em Brasília quando exercia funções de direção na UnB, por razões políticas, uns energúmenos tentaram me destruir e um processo contra mim, implicando a Universidade, o MEC, a Casa Civil de Golbery, aterrisou no Conselho Federal de Educação. Dom Serafim era membro do Conselho e foi um dos que, de maneira incisiva, junto com Armando Mendes e Hélcio Saraiva, defenderam-me, fazendo com que ganhasse o processo, numa primeira fase com apenas duas abstenções e, na fase final, com a aprovação unânime do parecer do jurista Caio Tácito, antigo reitor da Universidade do Estado da Guanabara (Rio).  

Dom Serafim era visto como membro da ala conservadora da hierarquia católica, mas, como arcebispo, sempre foi moderado, uma ponte entre correntes diversas existentes no clero dos anos sessenta e setenta em Minas Gerais. Mais que isto, na reitoria da Católica, deu sinais de abertura, acolhendo, sem, discriminação, professores que tinham sido afastados de instituições oficiais, por razões políticas. Pena que Teotônio Santos já não esteja por aqui para dar um depoimento sobre estes tempos. Não foi a toa que os famosos Generais Bandeira e Otávio Medeiros ameaçaram Dom Serafim como Dom João Resende Costa. Dom Serafim chegou a ser convocado, como acusado, para depor num daqueles IPM absurdos do final dos anos sessenta, conduzido pelo Coronel Euclides Figueiredo.

Recentemente, pedi a dois amigos em BH que me enviassem o número de telefone de Dom Serafim. Não o fizeram. Perdi a oportunidade de despedir-me do amigo. Na última vez que o vi, foi para lhe levar um exemplar de "O fato e a versão do fato –um jornalista nos anos sessenta" onde, entre outras coisas, contava o episódio da greve de Marzagânia, quando Dom Serafim e Bambirra, Dom Camilo e Pepone, juntos, fizeram uma campanha para apoiar e proteger os grevistas cujas famílias literalmente estavam passando fome.

É deste homem, educador e administrador competentepopular como mostrava seu amor pelo Clube Atlético Mineiro, solidário como na greve de Marzagânia e no enfrentamento de poderosos para proteger perseguidos, que vou guardar a lembrança e a quem homenageio neste momento de tristeza.

 

*O autor é professor universitário, ex-vice reitor da Universidade de Brasília e ex-diretor da Unesco para área de Educação.