JOÃO MARTINS LADEIRA
Bolsista CAPES/PNPD de pós-doutorado do PPGCOM/Unisinos. Pesquisador associado aos grupos Unisinos Cepos e Iesp Netsal. Doutor em Sociologia pelo Iuperj.
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Resumo

O artigo discute a construção da internet comercial, na tentativa de compreender o processo de institucionalização de um novo mercado. O texto se contrapõe a leituras que enxergam alguma ruptura radical com o passado, identificando em tal processo laços de continuidade com uma trajetória específica, relacionada à necessidade de manter a hegemonia norte-americana como centro capitalista. Para isso, o texto debate o contexto histórico no qual tais técnicas foram produzidas, na expectativa de demonstrar a especificidade do cenário no qual foram criadas. Tenta-se, deste modo, compreender um momento específico de agência, em um processo de criatividade social orientado à criação de empreendimentos econômicos de tipo inédito.

 

Introdução

Observar o início da exploração econômica da internet comercial representa um espetáculo curioso. Indica, decerto, a possibilidade de acompanhar a construção de uma justificativa com larga influência, voltada a convencer o público sobre a importância dos novos instrumentos que ganhavam forma. Duas retóricas caminham lado a lado. Por um lado, advoga-se em prol de alguma ‘nova economia digital’, capaz de renovar o capitalismo pela criação de oportunidades inéditas para o crescimento econômico. Tais tecnologias – dizia-se – poderiam reorganizar a macroestrutura para a produção de riquezas, alterando significativamente o modo de produção (Tofler, 1980). Por outro, confiava-se em demasiado na possibilidade destas mesmas técnicas contribuírem para um processo social inédito, pela crença na criação de dinâmicas colaborativas voltadas a alterar as microestruturas dos relacionamentos sociais (Levy 1990, 1997).

Eram explicações baseadas na ideia de que qualidades intrínsecas a estas tecnologias seriam capazes de exercer uma pressão revolucionária sobre o sistema, impossível de evitar. As ações humanas não transcorrem sem princípios de legitimação; normalmente, explicações incompletas sobre o processo social em andamento. Este artigo defende, a partir de uma análise socioeconômica, que tal tipo de especulação sobre a internet está fora de lugar. Tal visão exagera em diversos pontos. A atenção à tecnologia como origem de um futuro novo esbarra em evidências capazes de denotar mais a continuidade do que a dissociação com um antigo processo histórico. Nessa ótica, a internet encarna o resultado de uma longa trajetória, firmemente ancorada no passado. Discuti-la surge como o intento deste texto.

Este artigo investiga a construção histórica de tais tecnologias, abordando o movimento capaz de guiar a criação de tais inovações. A discussão traça um panorama que se estende de 1962 e 1995. Aqui, divide-se o desenvolvimento da internet em três momentos com características significativamente distintas (Hart, Reed & Bar, 1992). O primeiro diz respeito à criação e ao aprimoramento da Arpanet; o segundo, à participação da National Science Foundation (NSF) na investida; e o terceiro, à presença do Congresso norte-americano em tal processo. Cada seção do artigo versa sobre uma destas fases. Antes de tal empreitada, discutem-se os problemas teóricos envolvidos. A conclusão encaminha temas para um debate futuro.

 

Criatividade social, agência e reflexividade

Um problema teórico de central importância para a teoria social contemporânea reside na necessidade de considerar os movimentos de transformação na vida social, com ênfase nos momentos de criatividade responsáveis por instituir uma nova organização em relação às circunstâncias do passado (Giddens, 1976; Bourdieu 1980). Debater a organização das forças produtivas representa uma oportunidade ímpar de realizar tal trabalho. Certa tradição tende a considerar a operação da economia como consequência de uma lógica estrutural supraindividual, que se moveria por trás dos homens (Althusser, Balibar, 1970). Uma abordagem sobre a formação de mercados a partir de um esforço comprometido em superar tal dualismo entre agência e estrutura possui, então, interesse especial no caso de tal objeto de estudo.

Este trabalho recorre a uma discussão que busca apropriar questões próprias a uma teoria social sobre a agência, buscando associá-la e não desconectá-la a outros temas caros à investigação estrutural, como a “análise institucional, o poder e a mudança social” (Giddens, 1979, p. 2). Busca-se, assim, contrapor-se ao determinismo da estrutura e à teleologia suposta na investigação sistêmica, através da ênfase no sujeito competente de ordenar a vida social a partir do manuseio não discursivo e não inconsciente de seus próprios recursos (Garfinkel, 1967; Goffman, 1959). Trata-se de um entendimento localizado na consciência prática dos agentes. Pretende-se compreender de que modo se ordena a estrutura, indagando como determinadas organizações estáveis vieram a ser construídas. Ao encarar a questão deste ponto de vista, torna-se imprescindível considerar a reflexividade como elemento central na reprodução da vida social, confiando na capacidade dos agentes em dar prosseguimento às suas ações (Winch, 1958). Esta reflexividade se encontra envolvida na produção de novos mercados, como se discute a seguir.

 

O papel do Estado na gênese da Arpanet

O papel específico que a Arpa (Advanced Research Projects Agency) ocupou, nos EUA, para o desenvolvimento da internet comercial é o ponto de partida obrigatório numa discussão sobre a rede. No imaginário relativo às ‘novas tecnologias’, a Arpanet ocupa decididamente um lugar central. A estrutura é usualmente descrita como algo desconectado do arrazoado usual em que o restante da comunidade científica estaria envolvido. O projeto aparece como uma criação avant-garde, fruto de espíritos impetuosos nutridos por algum gênio presciente (Hafner, Lyon, 1996).

Tal interpretação, simples em demasia, esconde uma conexão muito particular da Agência com todo o ambiente que lhe permitiu surgir e do qual é um prosseguimento. A Arpanet é um entre vários projetos financiados pela Arpa, instituição criada em 1958, com a finalidade de implementar pesquisas de longa duração e alto-risco. A Agência fora instituída a partir do impacto público com o início do programa espacial soviético, encarnado no lançamento do Sputnik. A rede desenvolvida com recursos da Agência começava a funcionar a partir de 09/1969, interligando quatro centros de pesquisa partir de 01/1970, 13 após 01/1971 e 23 depois de 04/1972 (O’Neill, 1995).

Podem-se explicar as motivações da Arpanet a partir do lugar específico que a Agência ocupa na estrutura para desenvolvimento tecnológico norte-americano. A Arpa, na divisão de trabalho então instituída2, foi historicamente responsável por incentivar projetos que, em tal sistema de inovação, fossem decididamente inovadores. Para cumprir tal função, suas operações estavam isentas de prerrogativas essenciais a instituições de fomento. Não havia a necessidade de atender às várias regiões dos EUA nem de garantir equidade distributiva com unidades de menor capacidade técnica. Era possível se concentrar tão somente em ‘centros de excelência’ a fim de implementar programas para além do estado da arte do setor de computação.

Sua rede, conduzida especificamente pelo escritório da Agência conhecido como Information Processing Techniques Office (IPTO), divisão criada em 1962 (Norberg, 1996), encaixava-se exatamente nesta categoria. A partir dos anos 60, começa a surgir um entendimento muito pontual sobre os usos possíveis de computadores. O período, caracterizado pelo aumento da capacidade de processamento do hardware e pela sua significativa redução de custo, indica uma progressiva superação dos problemas iniciais que marcaram o desenvolvimento do campo. O aprimoramento da arquitetura de sistemas ou a criação de linguagens de programação haviam sido extensamente abordados durante o período de consolidação da computação. A partir de certo momento outro conjunto de temas começava a se abrir3.

Porém, a renovação interna do próprio campo é apenas parte da questão. Outros problemas de maior relevância estão aliados à ampliação do setor. Por um lado, o alto custo de produção das tecnologias desenvolvidas pela Agência tornava necessário ampliar o uso de tais recursos. Trata-se de uma forma de reparti-los entre as unidades financiadas pela Arpa, visando a extrair pleno proveito do empreendimento por todos os contratados. Por outro viés, surge também o imperativo de evitar dois gastos idênticos. Duas instalações com verba da mesma Agência, imaginava-se, não precisariam ter de depreender as mesmas inversões caso o acesso a tais computadores estivesse garantido a partir, por exemplo, de redes.

A Agência certamente possuía razões específicas para a criação de redes. Nenhuma delas, porém, dá certeza sobre aquele formato escolhido para sua implementação. Os motivos para a adoção de um modelo aberto estão para além do que foi acima discutido. As razões para a Arpanet constituir uma rede de redes, passível de permitir a estruturas diferentes manter suas estruturas conectadas estão em contingências muito próprias à instituição. Seu financiamento para atividades de ponta tornava praticamente impossível instituir alguma padronização entre elas. Entre os diversos projetos que a Agência promovia estavam redes de rádio e de satélite via comutação por pacotes, empreendimentos altamente experimentais, que simplesmente não dispunham de um padrão comum que pudesse conectá-los (NAS, 1999, p. 174; O’Neill, 1995, p. 77). Aqueles protótipos não poderiam ser outra coisa além de incompatíveis. A explicação para o uso de estruturas abertas surge especificamente daí.

O formato para funcionamento de tal rede, fundado na ideia de comutação de pacotes, ao burlar as limitações presentes em sistemas telefônicos de tráfego analógico, foi entendido como uma forma descentralizada e anti-hierárquica de comunicação. Compreendeu-se sua estrutura aberta, permitindo a conexão de redes distintas a fim de constituírem uma única grande estrutura, como capaz de reiterar alguma tendência contemporânea para a constituição de uma ‘inteligência coletiva’. As finalidades com as quais a estrutura havia sido criada eram, porém, de outra natureza. O investimento do IPTO/Arpa na criação de redes é em parte a consequência de um entendimento específico sobre a função de tais máquinas a partir de certo estágio de seu desenvolvimento, e em parte o desdobramento de necessidades materiais criadas pelo tipo de atividade que a Agência se propunha a financiar.

A responsabilidade por tal tarefa decorre do lugar no qual a Arpa esta colocada dentro da estrutura de financiamento dos EUA. Nem as demais agências estatais nem os industriais da computação teriam o perfil para conduzir este tipo de aprimoramento. Um argumento sobre a natureza do sistema público de pesquisa em tecnologia dos EUA, que vê a repartição de competência entre as diversas instituições como uma das explicações para os resultados positivos em aprimoramento técnico, pode ser utilizado aqui para clarear esta discussão. Uma das especificidades do caso norte-americano, a presença de diversos fundos distintos, destinados a tipos diferentes de projetos, tornava possível a praticamente todo tipo de produto viesse a encontrar verbas (NAS, 1999, p. 148). Neste ambiente, o IPTO/Arpa era a instituição destinada especificamente ao tipo de projeto que congregava todos os traços expostos.

Esta primazia da Agência será mantida de 1969, ano em que os primeiros experimentos com a Arpanet entram em operação, até 1979-1985, quando as pressões de outro grupo, integrante deste sistema de pesquisa, começa a gerar demandas progressivamente intensas por maior acesso a computadores. No final dos anos 70 e na primeira metade dos anos 80, a NSF começa a ampliar sua participação no processo de desenvolvimento de redes, numa ação orientada para suprir um conjunto de centros para ‘supercomputação’, vendo-se diante de demandas para tal setor de tecnologia oferecer resultados específicos voltados ao crescimento econômico do país.

A NSFNET e as redes pregressas à Internet

 

No final dos anos 70, as universidades norte-americanas, em relação ao setor de computação, ocupavam uma posição certamente contraditória. Historicamente, é certo que, nos EUA, boa parte de todo o financiamento em computação tenha vindo da própria Fundação4. Entretanto, seu envolvimento com a criação de redes tinha, até aquele momento, sido bastante pequeno. Parece seguro afirmar que sua limitada participação fazia a academia permanecer em segundo plano5. Até aquele momento, a primazia no uso da Arpanet havia sido oferecida para instituições ligadas ao sistema de Defesa, criando, enfim, uma situação contraditória. A rápida difusão das criações do IPTO/Arpa formara toda uma geração de pesquisadores com base em tecnologias sobre as quais não poderiam construir suas carreiras futuras.

A fase iniciada em 1979 é, assim, conduzida pela NSF. Não significa que, neste novo período, o legado do IPTO/Arpa deixe de forma alguma de ser relevante. Nem se pode afirmar que a Agência tenha abandonado a cena no que diz respeito a este tipo de aprimoramento tecnológico. Porém, as decisões, os financiamentos, os acordos, todo o conjunto futuro de iniciativas serão, daí em diante, um produto da Fundação, e vão permanecer a partir deste momento sob sua responsabilidade administrativa (Ladeira, 2007). O controle sobre o projeto de uma grande rede como que troca de mãos, passando para outro aparato de Estado, no qual vai permanecer até 1995.

Aquilo que conecta, e, ao mesmo tempo, separa ambas as iniciativas é altamente significativo. Já foram expostas as razões do IPTO/Arpa para a formulação de seu projeto. A ideia de uma rede aberta, a fim de se conectar com outras estruturas distintas para tráfego de informação, é o elemento central que a rede da Fundação, batizada de NSFNET, herda do protótipo criado pelo IPTO/Arpa. A reutilização destes traços centrais, criados no âmbito da Agência e reutilizadas pela Fundação, indica que tais projetos compartilham da concepção de que instalações de computação fisicamente distintas, quando associadas entre si, têm mais capacidade que quando isoladas. Com base neste entendimento a NSF dá prosseguimento ao projeto de criar uma estrutura de dimensão ilimitada a partir de uma rede de redes.

O cerne da proposta para o projeto da Fundação era permitir a diversas outras estruturas se conectar a uma mesma espinha dorsal, interligando o território dos EUA de costa a costa. Seria possível interligar qualquer outro projeto ainda por ser criado, assim como todos aqueles já existentes6. Nesta concepção, o topo da rede deveria ser ocupado por centros de supercomputação nos quais a Fundação pretendia investir. A decisão é característica da forma pela qual a NSF empregava seus recursos não só neste projeto, mas sim da própria lógica a orientá-la em um sentido mais amplo. Suas iniciativas possuem um mesmo padrão: construir uma infraestrutura capaz de permitir ao sistema universitário usufruir da inovação representada pelos computadores. Como havia sido na década de 50, durante os primeiros gastos da Fundação em centros de ciência da computação, a questão ainda era contrabalancear a preeminência das instituições de defesa como principais usuários das estruturas de redes.

O momento no qual a NSF começa a demandar uma parte em todas estas investidas é também o instante em que os EUA se veem diante de uma intensa crise econômica. Para o tipo de financiamento promovido pela instituição, a orientação, naquele momento, é de que os gastos no setor computação deveriam necessariamente contribuir para a recuperação produtiva do país. Os preceitos centrais para as ações da Fundação estão contidos em uma série de relatórios produzidos a partir de 1982. Tais textos espelham de maneira bastante clara as preocupações do momento.

O documento fundamental para este período é o texto que ficaria conhecido como relatório Lax (NSF, DOD, 1982). Seus diagnósticos centrais guiarão a forma pela qual a NSF perceberá sua parte a cumprir neste processo. A discussão central reside na ameaça à posição norte-americana como líder do mercado de tecnologia de informação. Receia-se a perda de competitividade para países da Europa ou para o Japão. Conclui-se pelo incentivo ainda mais intenso aos investimentos no setor de hardware, redes e software. Uma década antes, a forma através dos quais os gastos de defesa estavam organizados passaram também por uma reformulação. A partir de certo momento, a orientação se tornaria descolar os gastos de Defesa do sistema universitário, encerrando um período específico, marcado por esta associação extremamente próxima7. A obrigação para tais investimentos é de gastos militares dissessem respeito daí em diante unicamente a assuntos militares concretos. O modo de operação do IPTO/Arpa, privilegiando o aprimoramento científico sobre a possibilidade imediata de aproveitamento instantâneo, era substituído por obrigações até então inexistentes.

O processo conduzido pela Fundação se expande significativamente até o início dos anos 90, quando uma série de acontecimentos indica o esgotamento de características típicas à fase anterior, conduzindo para outro momento. Esta terceira fase prepara as condições para um empreendimento realmente comercial. As raízes técnicas da internet, conquistadas entre os anos 60 e 80 vão ser complementadas pela obrigação de seus usos se ampliarem para outro público com outras necessidades.

 

A gênese da internet comercial

Os anos 90 marcam o ponto alto de todo o processo anteriormente descrito. Em meados da década, a internet comercial apareceria com força, apresentando-se ao mundo como um fenômeno novo. Supunha-se: desconectada do passado, seria capaz de virar de ponta-cabeça a realidade instituída. Os pressupostos fundamentais pelos quais operava, ampla conectividade e descentralidade, eram tão somente desdobramentos técnicos dos investimentos anteriores, decerto. Todavia, a forma a partir da qual eram apresentados continha novidades. Não se tratava mais de um instrumento voltado a alcançar algum objetivo predeterminado. Agora, constituía-se como algo importante em si mesmo, não algo servindo a qualquer outra finalidade.

Tal momento final dava um sentido muito específico ao que começava então a ser construído. Esta ideia da rede como algo mais que um instrumento para potencializar pesquisa tecnológica dependia de dois referenciais. O primeiro estava na proposta de tratar aquela tecnologia como uma atividade econômica em si mesma, e não como um instrumento utilizado para expandir ou a indústria de hardware ou de software. O segundo, localizava-se no imperativo de disponibilizar seu uso para um conjunto mais amplo de usuários, além tanto academia quanto da indústria.

A visão de ampliar o público da rede para além aquele conjunto de usuários com acesso ao recurso entra em foco através de novos personagens. Trata-se de um assunto levantado não por conjuntos de especialistas. Conduz-se tal debate em uma esfera política. O tema surge no próprio Congresso, e não entre os pares das instituições científicas. A questão atinge o ápice de sua visibilidade especificamente a partir de 1991, quando se aprova, no Senado norte-americano, uma proposição8 mesclando a ideia de que, tão importante quanto os gastos para manter a posição hegemônica no mercado de computação são os investimentos voltados a disseminar estes recursos a um público mais amplo.

A ideia da rede como um empreendimento social entra em pauta para o sistema de financiamento tecnológico através da retórica sobre a importância de tornar tais recursos acessíveis ao sistema educacional. Aliada à defesa do desenvolvimento de tecnologias de ponta, começa a ocupar atenção um tema tão pontual como a digitalização de bibliotecas e a conexão de instituições de ensino médio e fundamental. As afirmações se utilizam de justificativas democráticas, entendendo o amplo acesso a estes instrumentos de comunicação como algo tão importante quanto tentativas de recuperar a produtividade industrial perdida. Institucionalmente, tais temas entram em pauta a partir de um conjunto de proposições apresentados ao Senado de 1986 em diante. São, no total, quatro textos, até o ano de 19919.

Os textos de 1986, 1988, além da primeira versão do texto de 1989, não apresentam grandes novidades em relação aos problemas anteriormente tratados. A questão é ainda a necessidade do constante aprimoramento e os riscos da competição internacional. São as audiências convocadas durante o processo de deliberação da S. 1067 que guardam novidades. Declarações emblemáticas surgem daí. À imagem das redes como um empreendimento voltado à comunidade científica e ao setor industrial, contrapõe-se a ideia de uma estrutura visando benefícios para grupos mais amplos. Propõe-se que todos os resultados obtidos deveriam ser ‘coletivos’, e não ‘individuais’. Para isso, cria-se a importância de considerar não apenas a expansão da infraestrutura como um fim em si: os benefícios maiores, defendia-se, estariam nos usos possíveis de empreender a partir daí. A sugestão por se digitalizar bibliotecas deveria ser apenas o primeiro passo neste sentido, abrindo a porta para algo que era substantivamente novo em relação ao que até aquele momento havia sido pensado (National High-Performance Computer Technology Act, 1989).

Ao lado de tal iniciativa, surge a proposição de tornar a rede uma atividade econômica importante por si mesma. A rede deixaria de ser um instrumento para ampliar a produção de tecnologias de informação possíveis de ser reutilizadas pela indústria apenas posteriormente. Propõe-se transformar ela mesma em uma oportunidade para ganho comercial. Ela seria entendida especificamente como um conjunto de tecnologias com chance de conduzir a uma nova forma de criar riquezas.

A noção de 'economia digital' já está completamente madura para ser utilizada no ano de 1998, como se constata através de novas séries de relatórios de Estado, que tentam oferecer métricas para a avaliação da importância de tal tema. Partindo de fenômenos como a ampliação de usuários, o aumento do número de domínios registrados, a expansão do tráfego, a produção de rendimentos para determinadas firmas pela venda de serviços ou pela criação de novas mercadorias, e, principalmente, pelo surgimento de formas específicas de negócio, sendo o comércio eletrônico o mais emblemático, tenta-se defender a noção de que os processos econômicos pós-Internet alcançam um patamar completamente distinto de desenvolvimento (Department of Commerce, 1998).

Deste modo, finalmente aparece a ideia de uma ‘economia digital’, guiada especificamente por estas tecnologias. Mesclada com a noção de que os ‘usos sociais’ poderiam mais relevantes que os ‘usos técnicos’ para os quais haviam sido utilizadas até o momento, tal proposta constrói um formato para as redes através do qual poderão ser vendidas para o mundo. Sua formatação, porém, repousa em uma releitura de certas capacidades criadas com finalidades bastante distintas daquelas para as quais se arvora a possibilidade de servirem.

 

Conclusão

Em 1995, após a privatização da estrutura que corresponderia daí em diante na internet comercial, levas de empresa de tecnologia surgem como cobiçadas oportunidades de negócio. Transforma-se em algo corriqueiro o investimento via capital de risco, a rápida abertura para a negociação de papéis e a incrível valorização de firmas que, em grande parte do tempo, possuem produtos pouco mais concretos que anúncios ou promessas futuras. O primeiro exemplo desta leva de firmas, a Netscape (Yoffie, Cusumano, 1999), alcança valores significativos, antes de tão somente iniciar uma onda de resultados negativos e ser finalmente vendida, deixando de existir como unidade autônoma. Um sistema repleto de vulnerabilidades, grande parte delas possivelmente do conhecimento dos principais personagens que operavam com base na ‘nova economia’, iria explodir em pouco tempo, rompendo uma bolha de especulação iniciada poucos anos antes.

O boom então experimentado tem seu alicerce ideológico nesta noção de que se está diante de um mundo novo, repleto de oportunidades a ser exploradas. Trata-se de uma noção extremamente útil, que se utiliza de um recurso tecnológico recém-descoberto pelo grande público, oferecendo-lhe uma dimensão bastante encorajadora. Trata-se de um entendimento que simplifica processos históricos, no qual está presente toda a problemática sobre a construção da hegemonia tecnológica na segunda metade do século XX. Deste conjunto de suposições, apropriados com uma finalidade muito pontual, institui-se o conjunto de especulações que se encerra abruptamente no começo da primeira década deste século, dando início a uma segunda fase da instituição destes meios de comunicação, assunto, porém para outro texto.

 

 

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Notas

2. Diversas instituições participaram do empreendimento que resultou no desenvolvimento da computação. Além da Arpa e da NSF, é possível destacar também a National Aeronautics and Space Administration (Nasa), o Departamento de Energia (DoE) e o National Institutes of Health (NIH), cada uma dedicando-se a implementar tecnologia respectiva a seus interesses setoriais.

3. Entre o final da década de 50 e o início dos anos 60, a indústria de computação havia se desenvolvido intensamente. O desempenho do hardware alcançara índices notáveis, enquanto seu uso ampliava-se de modo significativo. Entre 1955 e 1965 o número de máquinas instaladas nos EUA havia aumentado de 240 para 21.600 unidades. Em 1964, modelos distintos de um mesmo grande fabricante de hardware, a IBM, possuíam uma capacidade de memória 66 vezes maior e eram vendidos por um preço equivalente a 0,025 vezes que o de seu semelhante de 1953. Como complemento, um mercado específico para software começava a se constituir. O aumento da complexidade dos programas, desdobramento óbvio da expansão da capacidade de processamento destes instrumentos, tornava necessária a criação de firmas especializadas na sua produção; enquanto a crescimento na produtividade de software, consequência da criação de linguagens, tornava possível que tal atividade ganhasse maiores dimensões (Campbell-Kelly, 2003, p. 89-94).

4. A NSF começa a investir em computadores a partir de 1956. Naquele momento, seu objetivo era assegurar o uso de tais máquinas como forma de potencializar o trabalho em áreas do conhecimento sob sua responsabilidade. O debate travado naquele momento pela NSF é de que campos como matemática, física, engenharia, necessitavam progressivamente de tais máquinas, demanda rapidamente expandida também para a biologia e a sociologia (NSF, 1956, p. 57). A criação de fundos específicos para tal atividade, de 1959 em diante, e a formalização do primeiro escritório voltado específica para a área, em 1962, indicam o interesse progressivamente maior no assunto. A concentração de todos os departamentos especializados em um único grupo é implantada em 1967, com foco específico no sistema acadêmico: no ano em que é instituída, direciona 88% do seu orçamento para as universidades. O investimento em redes vem do ano seguinte, tomando 18,6% do orçamento da instituição. Entre 1959 e 1970, US$ 66 milhões haviam sido direcionados para universidades, numa média de US$ 6 milhões por ano (NAS, 1999, p. 105).

5. Tal fato se traduz, por exemplo, no escasso número de centros de pesquisa em universidades ligados à Arpanet. Afinal, em 1979, apenas 15 dos 120 departamentos de ciência da computação tinham acesso à rede (Keshan, Shah, 2001, p.102).

6. Após o protótipo do IPTO/Arpa provar sua funcionalidade, diversos outros tipo de redes foram criados por instituições da indústria e do campo científico. A própria NSF havia investido numa rede própria, a CSNET (Comer, 1983; Denning, Hearn, Kern,1983). Essa prole de estruturas com a mesma finalidade – interligar computadores – tem relação com o fato da Arpanet adotar, desde o princípio de suas atividades, posturas que parecem claramente orientadas a garantir progressivas economias de rede e retornos positivos (sobre ambos os conceitos, ver Varian, Shapiro, 1999) para sua tecnologia. Embora o acesso à estrutura fosse limitado, as especificações técnicas do projeto foram sempre públicas. Isso possibilitou pôr outras iniciativas em funcionamento, como cópias das implementações desenvolvidas pela Agência. Aquilo que a NSFNET vai conectar tem sua origem exatamente ai.

7. O marco principal desta ruptura está no texto conhecido como ‘emenda Mansfield’, assinado em 1970, que desconecta definitivamente os dois personagens daquele arranjo: os laboratórios universitários e a estrutura de Defesa (Geiger 1992).

8. S. 272, ‘High-Performance Computing and National Research and Education Network Act’, em 11/09/1991

9. São eles o ‘S. 2594. Supercomputer Network Study Act’, apresentado em 24/06/1986; o ‘S. 2918. National High-Performance Computer Technology Act’, em 18/10/1988; o ‘S. 1067. High-Performance Computing Act’, em 18/05/1989; e o S. 272.